A grande transição / 5 – Suscitar alternativas criativas à lógica de casta

By | April 30, 2015

A força da confiança vulnerável

Communitas é o conjunto de pessoas unidas não por uma “propriedade”, mas por um dever ou por um débito. Não por um “mais”, mas por um “menos”, uma carência, um limite que se apresenta como um ónus, ou até mesmo como um tipo de defeito de quem por ela está “afetado”, contrariamente a quem dela está “isento” ou “isentado

(Roberto Esposito, Communitas).

As comunidades e organizações que ao longo do tempo se mantiveram criativas e fecundas souberam conviver com a vulnerabilidade; não a eliminaram inteiramente do seu território mas cuidaram dela. Tal como muitas outras palavras verdadeiras daquilo que é humano, a vulnerabilidade (de vulnus: ferida) é ambivalente; a vulnerabilidade boa convive com a vulnerabilidade má e muitas vezes estão entrelaçadas uma na outra. A vulnerabilidade boa é a que está inscrita em todas as relações humanas criativas; nelas é preciso dar ao outro a possibilidade de ‘ferir-me’, caso contrário a relação não terá suficiente profundidade para ser fecunda.

A vulnerabilidade boa é a que se vive dentro de relações de amor, com os filhos, na amizade, nas comunidades primárias da nossa vida. Sabe-se hoje que as equipas de trabalho mais criativas são aquelas em que as pessoas recebem uma autêntica, e por isso arriscada, abertura de crédito. A criatividade a todos os níveis tem necessidade vital de liberdade, confiança, risco, elementos, todos eles, que tornam vulnerável quem os concede. A vida é gerada por relacionamentos abertos à possibilidade da ferida relacional. Nenhuma criança se tornará pessoa livre se lhe não for concedida uma confiança vulnerável, na família, na escola, nos espaços educativos em geral. E como adultos não chegaremos a exprimir o melhor de nós no trabalho se não recebermos e dermos confiança arriscada e vulnerável.

Mas a cultura das grandes empresas globais dos nossos dias quer o impossível: pretende a criatividade dos trabalhadores sem aceitar a vulnerabilidade dos relacionamentos. Pensemos no crescente fenómeno da designada ‘subsidiariedade de gestão’, segundo a qual o gestor deverá intervir nas decisões do grupo que coordena apenas naquelas atividades que, sem essa intervenção ‘subsidiária’, iriam ter resultados piores. É que as grandes empresas estão a aperceber-se de que para conseguirem o melhor dos trabalhadores têm que os colocar em condições que os façam sentir-se livres e protagonistas no trabalho que desempenham. Sem liberdade não pode haver criatividade. Mas para que a subsidiariedade funcione é indispensável que trabalhadores e grupos de trabalho experimentem genuína confiança; que, portanto, tenham até a possibilidade de abusar dela. Poucas coisas nesta terra dão tanta alegria como a participação na livre ação coletiva entre iguais.

Para que esta bela e antiga ideia de subsidiariedade não fique apenas um princípio a inscrever no balanço social, é essencial, então, que a gestão confie mesmo no grupo de trabalho e não queira controlar todo o processo para evitar abusos de confiança e ‘feridas’. De contrário, se quem recebe ‘a delegação’ se apercebe de que na realidade a ‘confiança’ é apenas instrumental, uma técnica para fazer aumentar o lucro, a subsidiariedade deixa de produzir efeito. Por isso a subsidiariedade nas empresas precisaria de estruturas de propriedade do capital não capitalistas, nas quais a delegação não procede do alto para os trabalhadores, mas na direção oposta (como em política, onde o princípio de subsidiariedade teve origem). Quando a subsidiariedade vem de cima para baixo passa a ser outra coisa: funciona apenas se e quando os proprietários acham que deve funcionar; é por isso pouco resiliente perante os fracassos. Só motivações intrínsecas e adequadas instituições permitem que a subsidiariedade e outras formas de participação consigam sobreviver a crises provocadas por graves abusos de confiança. Na realidade, as instituições naturalmente subsidiárias seriam as empresas democráticas e participativas (cooperativas, por exemplo), nas quais a ‘soberania pertence ao povo”, isto é, aos trabalhadores-sócios que a confiam acima, a gestores e diretores.

Por outras palavras, a subsidiariedade e a confiança funcionam verdadeiramente quando existe risco e vulnerabilidade. Uma moeda para relações humanas de toda a ordem, numa face representaria a alegria do encontro livre e gratuito e, na outra, teria a imagens das feridas que deram origem àquela alegria.

E aqui está outro paradoxo do sistema capitalista: a cultura que se ensina em todas as escolas de gestão, odeia a vulnerabilidade, considera-a o seu principal inimigo. Por muitas razões. A civilização ocidental estabeleceu ao longo dos séculos uma separação nítida entre os lugares da vulnerabilidade boa e os da vulnerabilidade má. Não aceitou a ambivalência e, com isso, criou a dicotomia. A boa vulnerabilidade, capaz de gerar a bênção foi associada à vida privada, à família e à mulher, que é a primeira imagem da ferida criativa. Na esfera pública, inteiramente construída no registo masculino, a vulnerabilidade é sempre má. Deste modo a vida económica e organizativa foram fundadas na invulnerabilidade. Mostrar feridas e fragilidades em lugares de trabalho é sempre e só desvalor, ineficiência, demérito. As últimas décadas de capitalismo financeiro aceleraram a natureza invulnerável da cultura do trabalho nas grandes empresas globais; delas toda a vulnerabilidade deve ser expulsa.

O grande meio para eliminar a vulnerabilidade nas comunidades foi sempre a imunidade. A imunidade é hoje a nota principal das grandes empresas capitalistas. Toda a cultura invulnerável é também uma cultura imunitária: se não quero ser ferido pela relação contigo, tenho que te impedir que me toques, construindo um sistema de relações que evite toda a forma de contaminação. A imunidade é a ausência de exposição ao toque do outro. A imunitas é a negação da communitas: a alma da communitas é o munus (dom e compromisso) recíproco; a da immunitas é a ingratidão recíproca, a ausência e o oposto do dom (in-munus, imune).

Todas as sociedades imunitárias são radicalmente hierárquicas, porque aumentam as distâncias verticais e horizontais entre as pessoas para que se não toquem; assim podem geri-las e orientá-las para os próprios fins. A primeira função da hierarquia é a de não deixar que as pessoas se misturem entre si, de não deixar que os diferentes se toquem; apenas os semelhantes se podem tocar (Casta é uma palavra de origem portuguesa significando “não contaminada”). Em todas as sociedades castais-imunitárias é severamente proibido tocar os diferentes; só os que pertencem à mesma casta podem e devem tocar-se. Por este motivo, as sociedades castais conhecem pouca criatividade e inovação; é sempre a biodiversidade que é criativa.

A falta de contactos com diversos é uma causa radical de decadência das elites nas sociedades castais, incluindo as empresas globais. Os movimentos mendicantes dos séculos XIII e XIV foram fator de grande inovação e criatividade económica, social, política e espiritual, desmontando a ordem castal e imunitária da baixa Idade Média, pois acolheram no mesmo convento pobres e ricos, pessoas de várias regiões e países. Essas novas comunidades foram capazes de enormes inovações pondo lado a lado mercadores e pobres, banqueiros e artesãos, artistas e místicos. Essa biodiversidade tornou-se criatividade e inovação; uma inovação que nasceu de não ter medo das feridas, dos estigmas da fraternidade. A fraternidade é anti-imunitária, como nos disse Francisco de Assis abraçando e beijando o leproso . A solidariedade-filantropia é quase sempre imune; a fraternidade nunca o é.

A raiz de qualquer civilização imunitária-castal é a gestão da distinção fundamental entre puro e impuro: há atividades, pessoas e coisas que são puras; podem tocar-se. Outras são impuras e só as castas mais baixas as podem tocar. Mas em todas as sociedades castais-imunitárias existe também uma profunda interdependência entre castas. Os brâmanes precisam dos párias (e vice versa), precisamente porque nestas sociedades a imunidade implica uma divisão de trabalho radical. É assim indispensável a presença de mediadores com a especial função de pôr em contacto os que não podem tocar-se.

Compreende-se assim porquê as grandes empresas capitalistas são hoje a imagem mais perfeita de sociedades imunitárias-castais; os gestores são esses mediadores que põem em contacto as várias ‘castas’ da empresa sem que ninguém toque os diferentes, os impuros. Só os iguais se tocam entre si (por vezes demasiado e mal, entre colegas, eles e elas). Os membros dos níveis ‘inferiores’ podem ser tocados por superiores apenas com instrumentos e técnicas; não diretamente. As grandes empresas são cada vez menos misturadas, mesmo quando as pessoas trabalham em open spaces (mas bem separadas em poder e no ordenado).

Deixamos de ser criativos, em todos os âmbitos, quando deixamos de nos encontrar e de nos abraçar, sobretudo com os pobres. As pessoas perdem criatividade quando, com o passar dos anos, reduzem o contacto com os diversos. Algo de semelhante está a acontecer com as  elites de organizações, de instituições e, claro, de empresas: a cultura imunitária que as leva a não se contaminarem provoca esterilidade e decadência. Muita da nossa capacidade de criar, energia e força dependem do contacto com outras expressões da humanidade, culturas, vidas e corpos. A esperança e a excelência nascem e renascem de lugares promíscuos da vida, do encontro de humanidades inteiras, de nos nutrirmos com os muitos tipos de comida da aldeia.

Está no horizonte uma profunda crise do capitalismo, provocada pela decadência das elites empobrecidas pela imunidade e não fecundadas pela boa vulnerabilidade de relacionamentos humanos inteiros. O medo de feridas relacionais está criando uma cultura global imunitária, da qual as grandes empresas são os vetores globais. Por esse motivo, um grande desafio dos próximos anos será a própria sobrevivência das organizações. Na verdade, o ponto mais alto da cultura imunitária-invulnerável será a eliminação das organizações, o desaparecimento dos lugares onde se con-vive e co-labora, para criar em seu lugar produções descentralizadas onde cada um trabalha em sua casa, graças a tecnologias cada vez mais sofisticadas. Consumidores sem lojas, banking sem bancos, escolas online sem professores e alunos e, quem sabe, hospitais sem enfermeiros e médicos, equipados com eficientíssimos robots e telecâmaras. Assim se conseguirá a eliminação definitiva da vulnerabilidade, encontraremos finalmente a árvore da vida; mas será uma árvore sem frutos ou com frutos sem sabor. E será a fome de frutos com sabor que nos levará ainda a nos encontrarmos, abraçarmos, a viver.

Luigino Bruni, Avvenire, 31 de Janeiro de 2015

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