Boaventura de Sousa Santos, numa serie de conferências, em 2005, na cidade de Buenos Aires – Argentina , que foram publicadas sob o título “Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social.” (na tradução em português) traduz, da seguinte forma, os desafios trazidos pela atual era da globalização: “nossa situação é um tanto complexa: podemos afirmar que temos problemas modernos para os quais não temos soluções modernas. E isso dá ao nosso tempo o caráter de transição: temos de fazer um esforço muito insistente pela reinvenção da emancipação social” (Santos, 2007:19).
De facto, os desafios do nosso tempo são imensos e é necessário não parar de procurar respostas para os mesmos. É este o tempo de transição a que Boaventura se refere, uma transição que deve ser marcada pela procura de modelos diferentes, pela procura de alternativas que se apresentem para responder às especificidades de cada região, de cada cultura, de cada indivíduo.
Perante teorias hegemónicas, sejam elas políticas, económicas, culturais ou sociais, Boaventura de Sousa Santos alerta-nos para o “desperdício” em que se incorre na assunção desta posição: “a meu ver, o primeiro desafio é enfrentar esse desperdício de experiências sociais que é o mundo; e temos algumas teorias que nos dizem não haver alternativas, quando na realidade há muitas alternativas” (Santos, 2007:24). E continua, “não é possível uma epistemologia geral, não é possível hoje uma teoria geral. A diversidade do mundo é inesgotável, não há teoria geral que possa organizar toda essa realidade. (…) Não é possível, e tampouco desejável, mas necessitamos de uma teoria sobre a impossibilidade de uma teoria geral. Estamos de acordo que ninguém tem a receita, ninguém tem a teoria” (Santos, 2007: 39).
Assim, para procurarmos, neste mundo globalizado, as causas, as hipóteses e as soluções, o citado autor apresenta duas dificuldades – uma visão muito curta do presente, que tem originado uma miopia face às alternativas e que tem reforçado as teorias e modelos hegemónicos, e uma visão extremamente alargada do futuro onde, como nada é previsível e acontece, sobretudo nos tempos atuais, a um ritmo vertiginoso, nada se pode preparar e reforçar. Neste sentido, e para combater estas duas dificuldades, Boaventura apresenta dois caminhos: – Dilatar o presente – Através de uma Sociologia das Ausências. – Contrair o futuro – Através de uma Sociologia das Emergências. É esta a teoria que apresentaremos em seguida, baseada nos conceitos de Monoculturas – o que nos querem propor, hegemónico, que cria ausências e silêncios – e de Ecologias – a visão global que deveríamos ter sobre o mundo, onde existem várias realidades a ter em conta e que devem emergir do silêncio para o qual foram relegadas.
No quadro seguinte podemos observar o que Boaventura considera Monoculturas, princípios e atitudes que originam teorias dominantes, míopes, porque apenas vislumbram uma parte reduzida da realidade, relegando para segundo plano uma enorme fatia do Real – de Ecologias, que congregam uma diversidade de saberes que coexistem no mundo da atualidade.
Monoculturas |
Ecologias |
Monocultura do Saber e do Rigor – ideia de que o único saber rigoroso é o saber científico | – Ecologia dos Saberes – ideia da ciência como parte de uma ecologia mais ampla de saberes – cada um tem o seu lugar e responde a certo tipo de desafios |
– Monocultura do tempo linear – ideia de que a história tem um tempo linear, marcado por calendários, relógios, etc. | – Ecologia das Temporalidades – ideia da multiplicidade de tempos e não a presença exclusiva do tempo linear: tempo das estações, dos antepassados. |
– Monocultura da naturalização das diferenças – ideia de que as diferenças criam sempre desigualdade e que portanto transportam em si, sempre a ideia de Inferioridade. | – Ecologia do Reconhecimento – ideia da necessidade de verificação dos motivos das diferenças e das hierarquias. |
– Monocultura da escala dominante – ideia da superioridade do Universalismo e da Globalização, relevando o Particular e o Local para um segundo plano. | – Ecologia da “transescala” – ideia da necessidade de articulação das escalas locais, nacionais e globais. |
– Monocultura do produtivismo capitalista -ideia de produtividade marcada pelo sistema capitalista, relegando para segundo plano tudo o que é considerado como improdutivo, dentro do mesmo conceito. | – Ecologia das produtividades – ideia da recuperação e valorização de sistemas alternativos de produção. |
Sociologia das Ausências (Colonialismo) | Sociologia da Emergências (emancipação) |
Fonte: Quadro elaborado a parir da teoria de Boaventura Sousa Santos (2007:32)
Como podemos observar no quadro, o autor observa que existem cinco monoculturas com caráter hegemónico – a do saber científico, a do tempo linear, a da naturalização das diferenças, a da escala dominante e a do produtivismo capitalista. Estas monoculturas estabelecem o que deve ser aceite, o que é válido e bom, e estigmatiza tudo aquilo que existe, paralelamente, acusando-o de não “ser uma alternativa crível às práticas científicas avançadas, superiores, globais, universais, produtivas” (Santos, 2007: 32).
Em oposição, propõe a emergência de cinco ecologias que reabilitam os silêncios, as ausências provocadas pela hegemonia já citada – a ecologia dos saberes, a ecologia das temporalidades, a ecologia do reconhecimento, a da “transescala” e a das produtividades. O grande desafio reside, nesta Teoria da Sociologia das Emergências, em estabelecer diálogo entre todas as diferentes culturas existentes no mundo.
A este respeito, Boaventura propõe um “Procedimento de tradução”, ou seja, um processo intercultural e intersocial que traduza saberes em outros saberes, que traduza sujeitos e práticas de uns aos outros; que procure buscar a inteligibilidade mas evitando a canibalização, a homogeneização, a supremacia de umas culturas sobre as outras. “Este procedimento de tradução é um processo pelo qual vamos criando e dando sentido a um mundo que não tem realmente um sentido único, porque é um sentido de todos nós; não pode ser um sentido que seja distribuído, criado, desenhado, concebido no Norte e imposto ao restante do mundo, onde estão três quartos das pessoas” (Santos, 2007:41). O autor apresenta o exemplo dos Direitos Humanos, um documento elaborado numa matriz claramente ocidental e do Norte. Como impor este documento a todo o mundo, se as linguagens são diferentes?
Neste procedimento de tradução, seria necessário “traduzir” os conceitos expressos no documento de forma a procurar, por exemplo, no islamismo e no hinduísmo, os conceitos que expressam as mesmas ideias base, a procura e a luta pela dignidade humana. Senão, os próprios conceitos que consideramos corretos e ao serviço da liberdade e da igualdade, serão os mesmos que aferrolham o desenvolvimento das diversas culturas precisando, por isso, de serem revisitados e colocados ao serviço do que proclamam – “estamos em um contexto no qual legalidade, direitos humanos e democracia são realmente instrumentos hegemónicos; portanto não vão conseguir por si mesmos a emancipação social; o seu papel, ao contrário, é impedi-la. O central em nossa questão é saber se os instrumentos hegemónicos podem ter um uso contra-hegemónico” (Santos, 2007:68).
Parece urgente, então, substituir as monoculturas, que pretendem silenciar as alternativas, colonizando-as e tornando-as “ausentes”, pela “emergência” de uma ecologia dos saberes, pluralidade das Vozes do Mundo.
Só assim se conseguirá caminhar para uma verdadeira emancipação e para uma democracia verdadeiramente participativa (de alta intensidade).
La Salete Coelho
(Investigadora no projeto Enhancing Studies and Practice of the Social Economy and Social Capital in Higher Education)
Bibliografia
Santos, Boaventura de Sousa (2007). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo, Bomtempo.