Léxico do bem viver social /16.Mansidão_Luigino Bruni

By | August 22, 2014

Acreditemos nos mansos: têm a chave do futuro

Palavras que não se gastam são as que morrem e ressuscitam em todas as épocas. A mansidão é uma delas; era já enorme nos salmos, no Evangelho e nas antigas civilizações orientais; os grandes mansos da história fizeram-na ainda mais sublime: o Padre Kolbe, muitos mártires de ontem e de hoje, Gandhi…; e tantos outros desconhecidos dos noticiários que com a sua mansidão humilde todos os dias tornam melhor a terra de todos nós.

A mansidão é a resposta virtuosa ao vício da ira que, como em nenhum outro tempo, domina hoje o espaço público, dá mau ambiente a escritórios, reuniões de trabalho, de condomínio, ao trânsito urbano, às assembleias políticas. Se não existissem os mansos, a nossa ira produziria muitas mais guerras e feridas que tornariam as cidades impossíveis de habitar: seriam dominadas pela reciprocidade de Lamek; haveria assassínios por causa de um risco na parede feito por um menino.

A mansidão de poucos cura e acode à ira de muitos. Bastaria isto para mostrar como é preciosa e indispensável a existência dos mansos que são a primeira minoria profética que eleva o mundo, a mãe de todos os fermentos, o sal primário da terra. São eles os verdadeiros não-violentos porque, com a sua fortaleza, impedem que a violência domine o mundo e os mundos que habitamos. Além disso, a mansidão faz viver  – e por vezes viver com alegria – os doentes crónicos; faz envelhecer e morrer bem; dá resistência em longas e duras provas da vida sem ira ou azedume para com os outros e consigo mesmo, mas deixando docilmente que lhes acariciem a cabeça: são os mansos que “ad manum venire sueti”.

Quando em certos momentos, muitas vezes de repente e sem aviso prévio, chegam à nossa vida desventura e grande dor, estar treinado na mansidão permite suportar pesados fardos. É a mansidão de Job que, sentado sobre um monte de cinza, não segue o conselho da mulher  – “amaldiçoa Deus e depois morre”; continua a viver, a resistir, a lutar docilmente. Nestas decisivas fases da vida a mansidão transforma-se em exercício doloroso e feliz de mergulhar na própria interioridade, para aí descobrir, escondidos, recursos e valores mais profundos dos que à nossa volta estão vacilando ou não existem já.

E aprende-se a dizer “amen”. Para dizer bem, sem ira nem maldade, os “amen” mais importantes da vida – especialmente o último – é necessária a virtude-bem-aventurança da mansidão. Disse-me certo dia um amigo e manso mestre: “Se a vida te põe de joelhos uma vez, levanta-te; se voltar a pôr-te de joelhos uma segunda vez, levanta-te de novo. Mas se te põe de joelhos uma terceira vez, então talvez seja o momento de rezar” (Aldo Stedile). Também o perdão verdadeiro, o que não é apenas esquecer para depois ficar melhor, que não é tomar para si (for-get) mas dar (for-give), requer a mansidão. O manso é capaz de perdão porque enquanto perdoa já se reapresenta dócil, pronto a apertar de novo a mão que o magoou.

Na tradição hebraico-cristã, a mansidão está associada ao herdar a terra. Que terra? A primeira terra que os mansos herdam é a “terra prometida”, a terra do advento de um reino de paz e justiça que todo o homem e civilização anseiam, ontem, hoje, amanhã. Herdam antes de mais o dom de olhos capazes de “ver” essa Terra, capazes por isso de desejá-la e de amá-la. Não se começa  – nem continua – nenhuma viagem; nem se atravessa um deserto se antes não se entevê para além dele – e antes ainda não se a deseja – a realização de uma promessa. Se não tivéssemos diante de nós uma terra prometida, nova e melhor, como seria possível lutar, mansamente, para tornar melhor a nossa terra ferida?

A herança da terra, porém, é também a que será amanhã dos nossos filhos se hoje formos mansos nós. Há, de facto, uma mansidão no uso da terra, dos seus recursos, dos seus bens – a água, o ar – uma mansidão de que temos extrema necessidade. Sempre que somos violentos com a terra e seus recursos diminui o valor da nossa herança. A mansidão está diretamente ligada à custódia: o manso Abel e o não- protetor Caim estão perante nós como opções radicalmente alternativas e sempre possíveis. O manso protege o oikos (a casa) e por isso faz uma oikonomia mansa. Uma economia mansa utiliza os recursos sabendo que os herdou e que os deve deixar em herança. Se fôssemos mansos outras seriam as contas a fazer para avaliar o crescimento e o bem-estar. Os algoritmos dariam um peso muito maior ao consumo de recursos não renováveis e a todos os que achamos na terra e que deveremos deixar em herança. O “destino universal dos bens”, princípio base da doutrina do Bem comum, diz respeito sem dúvida ao espaço mas interpela sobretudo o tempo. Se assim fizéssemos, a preocupação pelo “depois de nós” tornar-se-ia uma cultura geral que nos conduziria a usar todos os bens comuns com o mesmo cuidado com que se usa o que é dos filhos.

Pelo contrário, o capitalismo individualista – que precisamente nestes tempos de “crise” se está a propagar sem oposição – é demasiadas vezes violento no uso de recursos; desbaratando qualidade de ambiente, ar e água de amanhã, o futuro de povos inteiros (penso especialmente na África) para obter um grau de temperatura a mais ou a menos nas casas do norte do mundo; e – guloso – continua a comer terra, ambiente, pobres; não inclui as periferias; devora-as. Além disso, mansidão económica significaria, sobretudo para as grandes empresas, reduzir a agressiva presença da publicidade a toda a hora, deixar de explorar os recém-formados que nesta fase de escassez grave de trabalho estão muito expostos a chantagem, reduzir a velocidade e a agressividade da finança especulativa, mitigar a linguagem arrogante e vulgar dos poderosos, dobrar e amansar a mão de muitos bancos para com empresários e famílias ou a da administração pública para com quem sempre pagou impostos e agora, caído em desgraça, já o não pode fazer.

Com a sua linguagem típica – diversa mas profundamente ligada à das outras virtudes e bem-aventurançasa mansidão diz-nos, então, uma verdade antiga que se situa no centro da vida em comum. Quando olhamos para o espetáculo da vida que todos os dias se desenrola diante dos nossos olhos, a primeira impressão forte é que são os espertos, os violentos e os maus que prevalecem e têm sucesso. Os mansos parecem perdedores, marginalizados e esmagados pelos golpes dos poderosos, dos violentos; uma iniquidade que provocou também o desiludido grito de dor de Norberto Bobbio: “Ai dos mansos: não será deles o reino da terra” (“Elogio da mansidão”). As histórias e a verdade da mansidão ordinária e extraordinária,  pelo contrário, dizem que esta primeira impressão, embora real, não é necessariamente a mais verdadeira. Para quem fizer as contas dos ganhos e custos verdadeiros da vida individual e social, que não se avaliam principalmente em moeda, são frequentemente pessoas e comunidades mansas que registam mais alto proveito: “Fui jovem e agora sou velho, e nunca vi o justo desamparado, nem os seus filhos a pedir esmola” (salmo 37).

Se tivermos amanhã uma economia melhor que a atual, na qual os jovens possam trabalhar e não mais “mendigar o pão”, não será graças às promessas dos poderosos, mas pela ação forte, silenciosa e tenaz de muitos mansos. Bem-aventurados os mansos, porque hão-de ter a terra por herança.

Luigino Bruni, Avvenire, 12 de Janeiro de 2014

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