Quando a praça da cidade se torna deserto
O bem-estar depende muito da qualidade das instituições. Matrimónio, universidade, bancos, Estado, Igreja e sindicatos, são realidades evidentemente muito diversas mas com algo em comum, porque todas são instituições. Características das sociedades paralisadas em “ratoeiras sociais” são: por um lado, instituições ineficientes e corruptas; e, por outro, uma alta percentagem de pessoas com baixo ou nenhum sentido cívico e institucional. Uma tenaz mortífera, muitas vezes decisiva, que provoca sofrimento a toda a gente e empurra para a emigração os melhores jovens, atraídos por melhores instituições em outros Países. A história e o presente dos povos dizem-nos que, sem instituições apropriadas, as sociedades não criam prosperidade generalizada e bem-viver social.
A vida das pessoas é pobre e os povos entram em declínio quando as sociedades criam, selecionam e alimentam instituições que o economista Daron Acemoglu e o politólogo James Robinson designam “extrativas“. Nelas as elites usam as instituições para extrair rendimentos e obter vantagens pessoais e de grupo. Às instituições extrativas estes estudiosos contrapõem as “inclusivas” que existem em Países económica e civilmente florescentes, na prática os Países anglo-saxónicos (“Perché le nazioni falliscono – Porque falham as nações“, 2012). Na realidade, a fronteira entre instituições inclusivas e extrativas é muito menos nítida do que estes dois autores pensam, já que as duas formas convivem no interior das mesmas comunidades ou nações e, sobretudo, transformam-se umas nas outras. Em todos os contextos e âmbitos sociais existem instituições nascidas com o único objetivo de favorecer uns poucos, extraindo recursos de outros, lado a lado com instituições geradas por explícitas instâncias de Bem comum. Mas é ainda mais verdade que muitas instituições que nasceram inclusivas, com o tempo transformaram-se em extrativas e instituições que nasceram extrativas tornaram-se inclusivas. A história europeia é muito relevante a este propósito.
Nunca a economia de mercado emergiria no final da Idade Média se não tivessem existido específicas instituições: guildas,[1] corporações, tribunais, bancos, grandes feiras e também aquelas instituições fundamentais que foram os mosteiros. Algumas delas estavam intencionalmente orientadas para o bem comum (confrarias, hospícios para pobres, Monti di Pietà [2] …). Mas muitas outras (como as corporações) tinham nascido para proteger e promover os interesses dos seus membros (padeiros, sapateiros, droguistas …), e para garantir rendimentos de monópolio a específicas classes de mercadores. No entanto, a força civil das comunidades urbanas de então fez com que os interesses particulares se transformassem no interesse de muitos e, não raramente, de todos: muitas das conquistas da modernidade, incluindo políticas e civis, são fruto de instituições nascidas extrativas e que se tornaram inclusivas. A maior parte das instituições económicas foram, na origem, extrativas e fechadas, mas a coexistência com outras instituições políticas, civis, culturais, religiosas frequentemente abre e sublima os seus interesses iniciais. O bem comum não tem necessidade, apenas, de altruísmo, de benevolência e das suas instituições. A “sabedoria das Repúblicas“, como recordava já Giambattista Vico (Filósofo, Nápoles 1668 – 1744), está sobretudo em dar vida a mecanismos institucionais capazes de transformar até interesses particulares em Bem comum.
Esta alquimia, porém, funciona apenas no interior das cidades e das suas muitas e diversas instituições, “onde se protegem as artes e o espírito é livre” (Antonio Genovesi, Lezioni di economia civile, 1767). Todas as instituições estão destinadas a tornar-se extrativas ou a não transformar-se em inclusivas quando falta o pluralismo das instituições, quando não surgem outras novas para existirem ao lado das outras. A galeria dos mercadores, o palácio dos capitães do povo[3], o convento de São Francisco formavam muitas vezes os diferentes lados da mesma praça, onde se crescia em contacto com os outros, sem fusão, confusão e incorporação. E naquela praça havia cidadãos vivos/criativos e interessados, oficinas de artesãos e artistas, jograis e carroças de Téspis[4] que ofereciam sonhos e beleza, principalmente a crianças e pobres. A democracia, o bem-estar e os direitos emergiram deste olhar-se uns aos outros, do confronto e do controlo recíproco, da co-existência de iguais na mesma praça. Hoje em dia as instituições económicas globais estão a viver uma forte deriva extrativa (até literalmente falando: veja-se o que se passa com as matérias primas da África!) porque a seu lado faltam outras instituições igualmente globais: políticas, culturais e espirituais que dialoguem, discutam, se controlem umas às outras.
Há ainda uma segunda consideração. Na sociedade existem também muitas instituições inclusivas na origem (porque foram criadas por ideais, às vezes até muito altos) que com o tempo se esclerotizaram; e os seus frutos, de bons que eram, tornaram-se selvagens, quando não venenosos. Esta involução de antigas boas instituições – nesta idade de transição são particularmente numerosas – depende muitas vezes da incapacidade de alterar as respostas históricas, de estar apegado às que décadas ou séculos atrás foram dadas, esquecendo assim as exigências de Bem comum que as tinham suscitado. Sucede então que grandes e nobres instituições – estou a pensar em muitas instituições públicas, mas também em muitas esplêndidas de ordens religiosas – transformam-se, progressiva e inconscientemente, em realidades extrativas, que não extraem tanto ou apenas recursos económicos mas imensas energias morais dos seus membros e promotores, acabando por esgotá-las e esgotar-se na gestão onerosa e dispendiosa de estruturas que perderam o rumo das necessidades originais de ontem e dão hoje respostas a necessidades que já ninguém tem. O objetivo inicial e a “vocação” da instituição torna-se cada vez mais distante e a sua missão principal passa a ser a auto-conservação e o adiamento da própria morte.
No ciclo de vida das boas instituições existem momentos críticos nos quais se decide se a direção a seguir será uma maior inclusão ou um fechamento involutivo sobre si mesma. São as crises, de modo especial aquele tipo de crise que se manifesta num desalinhamento entre a missão da instituição e a sua estrutura organizativa. O vinho começa a sentir os odres demasiado apertados e ouvem-se os primeiros rangidos. Boa parte da arte dos dirigentes destas instituições está no compreender que estas crises não se resolvem insistindo na dimensão ética e motivacional das pessoas, mas que é necessário intervir na estrutura. O diálogo entre as estruturas históricas de uma instituição e as exigências da sua fundação é um exercício essencial e vital para todas as instituições, principalmente as que surgiram de elevados ideais. Os ideais das pessoas desaparecem se não se tornam instituições; mas estas instituições podem morrer se não se deixam converter periodicamente pelos ideais (“as exigências”) que as fizeram nascer.
As instituições inclusivas e generativas são formas altas de bem comum. Como qualquer bem comum precisam de dedicação, cuidado e conservação das margens e das encostas. O período de crises institucionais que estamos a viver poderia tornar-se dramático caso a desconfiança nas instituições corruptas e ineficientes aumente a incúria e a falta de manutenção das nossas frágeis instituições democráticas, económicas, jurídicas e agudize a tendência para fugir de instituições, característica do período social que vivemos. Dedicar tempo, paixão, competências para reformar instituições doentes é hoje, talvez, a expressão maior de virtude civil. A primeira grande atenção pelas instituições, principalmente pelas que se encontram doentes, consiste em habitá-las, em não as deixar apenas nas mãos das elites que as dirigem. E, logo a seguir, fazer nascer novas instituições políticas, civis e espirituais globais, que enquadrem as económicas (que precisam de reforma porque demasiado invasivas, não democráticas e poderosas) e travem a deriva extrativa do capitalismo que temos, levando de novo o mercado à sua profunda vocação inclusiva.
As galerias de mercadores cresceram demasiado, compraram os palácios vizinhos, contrataram os jograis; algumas gostariam de ocupar com fins lucrativos até os conventos. As instituições económicas se forem deixadas sós na aldeia global acabam por se tornar os únicos habitantes de praças cada vez mais vazias. Precisamos de encher com novas instituições as nossas praças globais, se nelas queremos ver de novo oficinas, artistas, trabalho.
Luigino Bruni, Avvenire, 02 de Fevereiro de 2014
[1] (NT) – “Guilda”: associações existentes já no séc. IX na Inglaterra, com finalidades de defesa, assistência religiosa e ajuste contas. Entre 1100 e 1133 apareceram as gildas promovidas por mercadores e artesãos e que vieram a adquirir a função económica das corporações medievais em França, Itália, Alemanha e Países Baixos, tornando-se no séc. XIII um elemento regulador nas relações de trabalho, profissionais e comerciais. Decaíram com o desenvolvimento da revolução industrial e foram dissolvidas com o Municipal Reform Act de 1835.
[2] (NT) – “Monte di pietà”: Instituto destinado a conceder empréstimos (mesmo mínimos) em condições suaves, com a garantia de penhor sobre objetos móveis. Difundidos em Itália após o nascimento do m. di p. de Perugia (1462) e, sobretudo, após Leão X ter reconhecido a liceidade do juro (unicamente enquanto destinado a cobrir as despesas do exercício), assumiram em 1938 o nome de monti di crédito su pegno …(sobre a penhora); podem, desde 1990, fundir-se com outras entidades de crédito, dando vida a sociedades por ações que operam no setor do crédito.
[3] (NT) – Magistrado que protegia o «povo» na sua organização económico-profissional.
[4] (NT) – Companhias de teatro ambulante, cuja “invenção” é atribuída a Téspis de Icária – séc. VI AC – considerado o criador da tragédia grega.