Não é utopia uma alternativa à economia de domínio
Estamos todos a pagar as consequências da ausência de comunhão. Corremos o risco de nos habituarmos à sua falta e de deixarmos, por isso, de a desejar. É dentro de comunidades que a comunhão acontece, embora o contrário não seja necessariamente vedadeiro: poderão existir – e existem de facto – comunidades nas quais não há qualquer forma de comunhão entre pessoas, onde o dom se torna obrigação, sem liberdade ou gratuidade. Os estudos sobre a felicidade e bem-estar subjetivo dizem hoje muito claramente que a principal causa de felicidade das pessoas é a vida de comunhão, a partir da primeira célula de comunhão que é a família. A qualidade de vida depende decididamente da qualidade dos relacionamentos a todos os níveis, incluindo a fundamental experiência de comunhão que é o trabalho.
É errado pensar que a comunhão só é possível em relacionamentos íntimos e familiares: a comunhão é a vocação mais profunda e verdadeira dos seres humanos em todos os âmbitos onde o humano se exerce. São necessários toda a arte poética de Dante e os seus geniais neologismos para descrever certas dimensões da comunhão, tão íntimas e espirituais elas são (“s’io m’intuassi come tu t’inmii“, Paraíso, IX,81)[1]; mas outras há, não menos decisivas para a qualidade da nossa vida; embora não requerendo a mútua inabitação das almas, precisam que cada cidadão sinta e considere os outros ligados a si e necessários para a própria felicidade – a Europa terá sempre de sofrer enquanto a comunidade não passar a ser também comunhão.
É a comunhão que nos permite declinar os verbos da existência em todas as pessoas, particularmente a primeira pessoa do plural (“nós”). E quando esta não está presente na nossa sintaxe, falta também a segunda pessoa do singular: desaparece o rosto do outro; nas comunidades, então, habitam apenas anónimas e solitárias terceiras pessoas.
Para evitar que se torne “comunionismo”, é necessário declinar a comunhão sempre a par da igualdade, da liberdade e da gratuidade. Diferentemente da comunidade, a comunhão requer uma certa igualdade, sobretudo quando da comunhão de bens se passa à comunhão de pessoas. É uma igualdade em dignidade, um reconhecer-se “olhos nos olhos”, sabendo que o outro está presente naquele relacionamento porque, tal como eu, também ele livremente quis estar (e porventura quererá amanhã sair); e fez a sua escolha com gratuidade. Por isso a comunhão requer que se vá para além do status; e não estará completa enquanto tal não acontecer. A comunidade pode existir e durar também em sociedades feudais e desiguais; a comunhão requer muito mais. E mesmo quando tem início no interior de comunidades não igualitárias e castais, se for autêntica, a experiência de comunhão pouco a pouco mina por dentro essas comunidades e transforma-as. Como aconteceu nas primeiras comunidades cristãs e nas que nasceram de grandes carismas religiosos e laicos: nobres ou plebeus chegavam ali e logo se achavam dentro de uma realidade nova de comunhão verdadeira, onde não havia “nem homem nem mulher, nem escravo nem livre …” (Paulo aos Gálatas). Por este motivo a comunhão tem qualquer coisa a ensinar mesmo a irmãos e irmãs de sangue: uma fraternidade nova, na qual se compreende que tornar-se irmãos é possível. A comunhão é toda liberdade, porque é experiência altíssima de gratuidade; não é por acaso que chamamos comunhão também à eucaristia, a eu-charis. A história conheceu e conhece comunidades-sem-comunhão, precisamente porque lhes faltava este tipo de igualdade, de liberdade e de gratuidade.
O sofrimento do mundo é consequência sobretudo da falta de comunhão a todos os níveis, a começar pelo económico. Precisamos de comunhão para tentar resolver os graves problemas das misérias e da exclusão; a filantropia não basta e muitas vezes é até danosa porque é unilateral. A comunhão pede muito a todos – a quem dá e a quem recebe – porque é uma forma de reciprocidade na qual todos dão e todos recebem. E na qual todos perdoam; sem perdão contínuo e institucionalizado a comunhão não pode durar.
A comunhão é felicidade, bem-estar, bem-viver. Mas dentro de nós e à nossa volta a vida mostra-nos continuamente um espetáculo de não-comunhão. Dizer – e recordá-lo sempre – que a comunhão é vocação da humanidade significa ter uma ideia acerca da saúde e da doença das sociedades humanas. O humanismo hebraico-cristão, por exemplo, fala-nos de um início da humanidade na comunhão, um início que é também o fim último da história, a meta para a qual tendemos. A não-comunhão não é nem a primeira nem a última palavra sobre o destino do homem. Dizer que a comunhão é a saúde e a não-comunhão a doença, significa ter uma ideia da terapia necessária. A cultura dominante, pelo contrário, está a inverter esta ordem e transformou a doença em saúde. É o que faz quando diz que a rivalidade, a inveja e a prepotência são os principais agentes de crescimento económico; e que a concórdia, a gratuidade e a igualdade não fazem crescer o PIB.
Mas quem acredita na comunhão como vocação dos seres humanos, quando não a vê realizada repete, como Don Zeno Saltini, “o homem é diferente” do que parece, de como o vemos na história; é “maior” que as suas desunidades e discórdias. É a possibilidade real de um “ainda não” de comunhão que nos permite viver e suportar os “já” da não-comunhão. Quando este horizonte amplo se apaga ou é taxado de utopia ingénua, o humano torna-se raquítico; se vem a faltar o ideal que faz erguer o nosso olhar mesmo quando estamos na lama, a política torna-se cinismo, a economia domínio e a vida em sociedade uma prisão perpétua. A qualidade civil, moral e espiritual do III milénio vai depender da capacidade que tivermos, a todos os níveis, de ver no ser humano mais de quanto até agora vimos; de nos dotarmos de instituições de comunhão que promovam a paz, a concórdia, o bem-estar e o bem-viver.
Com “comunhão” termina este primeiro fascículo de novo léxico. Sinto necessidade de procurar novas palavras pelas ruas, no meio da gente, entre os pobres, onde encontrei as que procurei tratar até aqui. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, no seu conto “La Busca de Averroes” imagina a crise que viveu o grande filósofo árabe quando traduzia as palavras de Aristóteles “tragédia” e “comédia”. Não conseguia traduzi-las porque faltavam na sua cultura – ou ele pensava que faltassem – as experiências que aquelas duas palavras gregas significavam. Saiu de casa, caminhou pelas ruas estreitas de Córdoba, escutando quem passava. Regressando à sua biblioteca pareceu-lhe ter compreendido o sentido daquelas longínquas palavras. Mas o Averróis de Borges trocou a tradução (“Aristóteles chama tragédia aos panegíricos e comédia às sátiras e anátemas”). Tinha passado, talvez, demasiado distraído pelas praças e pelos mercadores e não tinha sido capaz de descobrir as tragédias e as comédias “lá em baixo, no pequeno pátio térreo, onde brincavam alguns rapazes. Um, de pé sobre os ombros de outro, fazia de muezim; o que o segurava, imóvel, fazia de minarete; um terceiro, de joelhos, representava os fiéis“. Nesta época, admirável e difícil, de transformações rapidíssimas, há palavras “grandes” que não conseguimos já “traduzir”; arriscamo-nos assim a perdê-las para sempre. É preciso olhar de novo os meninos que brincam, encontrar as pessoas na rua. É lá que poderemos compreender o sentido de grandes palavras perdidas ou desgastadas pelo tempo, a partir da Palavra que se tornou demasiado estrangeira nas nossas praças e mercados. É o que vou tentar fazer a partir do próximo domingo, de acordo com o diretor do jornal, com uma nova série de reflexões.
Agradeço a quem me seguiu neste primeiro fascículo de “léxico”; obrigado a quantos me escreveram. Espero que continuem a fazê-lo, oferecendo-me outras palavras, semânticas diversas, novas histórias para contar; para as contarmos uns aos outros.
Luigino Bruni, Avvenire, 09 de Fevereiro de 2014
[1] Na tradução de Vasco Graça Moura – Quetzal Editores, 2011, p.669: “se me entiasse como tu te enmias”; VGM inclui nota explicativa destes neologismos de Dante, onde explicita: “entrasse em ti” e “entras em mim”) – (NT)