As garras da ingratidão
“Bom seria que nos habituássemos a refletir a fundo no facto de que o meu eu é comunhão. Se podemos definir as comunidades como o encontro de alguns indivíduos, em determinado tempo e lugar, mas na tensão a fazerem-se pessoa, bom seria, então, que sentíssemos a insuficiência radical das comunidades, e que, superando-as, tendêssemos continuamente a dissolvê-las na comunhão”.
Giuseppe Maria Zanghì, Poche riflessioni sulla persona (Poucas reflexões sobre a pessoa)
Em todas as grandes épocas de passagem a primeira indigência é a indigência de palavras. Na época de veloz transição que vivemos, o mundo do trabalho está mal, também, porque lhe faltam poetas, artistas, mestres de espiritualidade que nos tragam novas palavras para entender as alegrias, sofrimentos e esperanças por que passamos. Falta-nos linguagem para exprimir o que estamos vivendo, para o narrar; e para que, narrando-o, o curemos.
Nas décadas passadas tínhamos aprendido a compreender e a contar uns aos outros sofrimentos e alegrias de fábricas e campos. No século passado produzimos literatura, poesia, cinema, canções, espiritualidade do campo e da fábrica, do trabalho independente, empresários e empregados; isso forneceu-nos palavras para compreender e elaborar as feridas e as bênçãos do grande humanismo do trabalho. Cantando-o e narrando-o, entendemo-lo; vivemos as suas festas e processamos os seus lutos. Foi assim que, quase sempre, nos salvamos. Não teríamos sobrevivido sem poetas e artistas e sem os carismas do trabalho que nos amaram dando-nos sobretudo as palavras. A poesia, a arte e as espiritualidades são principalmente um dom de palavras diversas e maiores para dar nome às experiências que vivemos; sem esses dons elas ficariam mudas, mal-ditas e mal-vividas.
A carestia de palavras novas é particularmente intensa e evidente na vida no interior das organizações. Os dirigentes, de modo especial, encontram-se apertados por uma verdadeira tenaz relacional a que não sabem dar nome. Por um lado, são objeto de uma enorme solicitação de reconhecimento proveniente dos trabalhadores. Por outro lado, estes gestores não encontram reconhecimento para o seu trabalho. Se e quando trabalhamos a sério, todos sabemos que no trabalho quotidiano há muito mais do que o contrato exige. A mera execução do contrato não bastará a nenhuma empresa; nem a nenhum trabalhador basta apenas o salário para que dê o melhor de si mesmo. A empresa tem necessidade precisamente daquilo que não pode comprar ao trabalhador: entusiasmo, paixões, alegria e vontade de viver, criatividade. Precisa da sua alma e do seu coração. Mas estas dimensões humanas são apenas e só liberdade; por isso a empresa só as consegue ter se o trabalhador as dá. Nenhum incentivo pode substituir o dom no trabalho; pelo contrário, geralmente destrói-o. Por outras palavras: a empresa tem mesmo necessidade daquilo que o contrato de trabalho, com os seus instrumentos típicos – incentivos e controlos – não consegue comprar, porque é dom. E não existe dom sustentável sem reciprocidade. É esta a raiz da imensa, constante, crescente procura de estima, reconhecimento e atenção da parte dos trabalhadores, em boa medida por satisfazer. Esta realidade, evidente para todos, fica quase sempre muda por falta de palavras e categorias para a exprimir.
No entanto, a diferença entre procura e oferta de estima e reconhecimento dentro das empresas é criada e alimentada pela própria cultura das grandes empresas e organizações (veja-se o artigo precedente desta série); pedem tanto ao trabalhador que o levam a abandonar progressivamente os outros âmbitos da sua vida, independentes do trabalho. São assim vedadas ao ser simbólico e sedento de infinito que é a pessoa todas as janelas da alma, exceto a do trabalho, com a promessa de que dessa única janela poderá avistar paisagens e horizontes que, para serem realmente vistos, teriam necessidade das perspetivas das outras janelas. No entrelaçado destas existências a uma só dimensão, o gestor acaba por ser a primeira vítima da doença relacional para cujo surgimento contribui ele também, por vezes sem o saber.
Que fazer? Os estudos sobre o bem-estar no trabalho começam a dizer que a primeira e essencial forma de reciprocidade invocada pelos trabalhadores é serem “vistos” pelos responsáveis; deveriam estes, portanto, estar mais presentes nos lugares onde o trabalho se faz. Vendo o trabalho e o trabalhador que trabalha, poderia também ver-se o dom, e é tanto, contido naquele trabalho. Este olhar é a primeira reciprocidade pretendida pelos trabalhadores; um olhar de atenção que tornaria visíveis as dimensões essenciais do trabalho que permanecem invisíveis porquer ninguém olha para elas, porque não olham para elas as pessoas que precisariam de as ver, para as reconhecer; ou porque as olham com desconfiança, apenas para as controlar. É claro que o olhar dos colegas e mesmo o nosso são importantes; mas não bastam. Nas comunidades, incluindo as comunidades de trabalho, nem todos os olhares são iguais; as funções e responsabilidades contam, e o meu trabalho deve ser visto sobretudo por quem tem responsabilidade sobre ele. Como hoje esclarecem estudiosos franceses como Norbert Alter ou Anouk Grevin, nas grandes organizações modernas a teoria e a praxis de gestão levam sempre mais os dirigentes a não poder ver o trabalho porque “obrigados” a passar o tempo todo entre documentos e computador, a produzir gráficos, indicadores, controles; ou a realizar entrevistas de avaliação “institucionais” nas quais em meia hora é preciso avaliar um trabalho real que nunca se viu ao longo de todo o ano. Vêem-se marcas do trabalho, as operações; mas os sofisticados instrumentos de análise nada permitem ver da experiência humano-espiritual do trabalhador. Acaba-se assim por não avaliar os aspetos mais importantes do trabalho para os quais seria necessário principalmente o sentido da vista. A vida boa que, no meio de esforços e contradições, se experimentava e continua a experimentar-se em muitas empresas de artesanato, depende também do facto de o empresário trabalhar juntamente com os empregados: uma companhia que gera solidariedade e um circuito de reconhecimento virtuoso. O principal modo para reconhecer o dom que existe em cada trabalho é ver e reconhecer o trabalho nas condições ordinárias do dia a dia.
Mas há mais: também os dirigentes são trabalhadores, e também eles têm uma necessidade vital de reciprocidade, de reconhecimento, de serem “vistos”. No entanto, nas grandes sociedades anónimas, nas quais a propriedade está fragmentada, os proprietários estão longe ou nem existem, não há ninguém “acima” do gestor a ver o seu trabalho, a reconhecê-lo, a agradecê-lo. Os gestores são inundados por pedidos de atenção e de reciprocidade, mas por seu lado não têm quem possa reconhecer-agradecer o seu trabalho, que por isso fica não-reconhecido. A organização torna-se grande produtora de ingratidão, cada vez mais impossível de suportar (mesmo quando se procura compensá-la com grandes ordenados).
É preciso, então, aprender de novo a olhar e ver o trabalho, todo o trabalho e o trabalho de todos.
Antes ainda, e mais radicalmente, é preciso ter, coletivamente, a coragem de levar a cabo duas operações que concretizadas, provocariam uma revolução.
Primeira operação: as empresas devem ajudar os seus trabalhadores, todos eles, a abrir de novo as janelas existenciais que nestas últimas décadas as próprias empresas ajudaram a fechar à luz. Para que a vida dos trabalhadores possa florir tem necessidade da luz da casa toda; caso contrário, também a sala do trabalho fica menos luminosa. Não se pode pedir à carreira profissional e aos dirigentes que, só por si, satisfaçam a nossa necessidade de reconhecimento, de estima, de amor, de céu; se tentassem fazê-lo transformariam as empresas em igrejas sem Deus nem culto, como nas idolatrias. Paralelamente, se para superar as nossas frustrações e desilusões deixássemos de pedir muito (não tudo) ao trabalho, sucederia que a vida, toda ela, ficaria triste e sem chama. Para dar de novo ao trabalho luz e ar, é preciso fazer entrar o sol em todas as salas da vida.
A segunda operação necessária é ainda mais radical, difícil e decisiva. Durante eras aprendemos a trabalhar e a gerir operações complexas, em casa e nos mosteiros. As primeiras organizações foram os partos, para a cooperação de mulheres pela vida, para gerir o final da gestação; trabalhos de mãos de mulher acompanhando o trabalho de nascer. Mulheres, mãos, vida: ingredientes ausentes em demasia da nossa cultura organizativa, baseada toda ela no registo masculino e já sem a cultura das mãos e a sua sabedoria típica. A cultura do trabalho em organizações complexas surgiu e amadureceu depois no interior das abadias, de séculos de ora et labora: espírito ao serviço das mãos, mãos aliadas do espírito, juntos nutriam o trabalho. Os primeiros gestores de grandes organizações formaram-se lendo e copiando os códices de Cícero e de Agostinho. Poderemos cuidar dos relacionamentos nas empresas se as confiarmos às mãos de novos gestores humanistas, peritos em humanidade, capazes de escutar, de curar, de interioridade, de acudir aos problemas das organizações. As escolas de gestão estão concentradas exclusivamente em instrumentos e técnicas, quando deveriam pôr os alunos a estudar poesia, arte, filosofia, espiritualidade; as aulas deveriam realizar-se dentro das fábricas para que os alunos se formassem olhando o trabalho, sentindo o seu real cheiro e perfume; não no ambiente sintético das salas de congresso dos hotéis.
O mercado de amanhã vai ter vital necessidade de pessoas inteiras, fora e dentro das empresas; pessoas que cultivem e ponham em ação, também, as dimensões fundamentais do ser humano que desde há milénios chamamos dom, reciprocidade, interioridade; são essas dimensões que tornam a vida digna de ser vivida, no trabalho e em casa.
Luigino Bruni, Avvenire, 25 de Janeiro de 2015