Léxico do bem viver social / 8. Bens de experiência_Luigino Bruni

By | April 27, 2014

Algo de único

Está a surgir uma nova procura de participação no consumo, na poupança e no uso dos bens. Por exemplo, uma diferença radical entre a internet de há 10-15 anos – predominantemente constituída por sites web e email – e a web dos social media e das apps é um maior envolvimento e protagonismo dos habitantes da rede que somos nós. Analogamente, hoje em dia a tv não emite apenas programas para ‘telespectadores’; pede-nos para votar no melhor cantor ou jogador. E o interessante é que as pessoas participam, investem tempo para dizer a sua opinião e para se sentirem parte ativa de uma nova forma de comunicação: para fazer uma experiência.

Muitos de nós dedicamos tempo – e muito – para anonimamente escrever ou melhorar as entradas de Wikipédia (a enciclopédia da web) ou para aperfeiçoar um software livre. É como se estivéssemos a criar novas ‘praças’, às quais as pessoas estão a regressar, de modo diverso e com prazer, para falar, perder tempo desinteressadamente. Um fenómeno certamente ambivalente; mas a ambivalência pode ser também o início de um processo criativo.

Para homens e mulheres nunca foi suficiente o mero consumo de bens. Animais simbólicos e ideológicos que somos, sempre pedimos mais aos produtos que consumimos: do status social à representação de um futuro melhor durante presentes de indigência. Através dos bens quisemos falar, contar histórias, descrever-nos aos outros e ouvir o que os outros dizem. Fazer experiências. Alguns bens, aliás, estão de tal modo ligados a uma experiência que os economistas os designaram “bens de experiência” (experience goods); são os bens que apenas conseguimos compreender e avaliar depois uma experiência direta e pessoal. São bens de experiência quase todos os bens culturais e turísticos. Só posso avaliar se valeu a pena o bilhete para ver um museu quando o visito, não antes; compreendo se o preço de um fim de semana de turismo rural era razoável apenas quando me encontro  no local, vejo a paisagem, o ambiente e conheço os donos da casa. O mercado não gosta desta incerteza e procura oferecer-nos alguns dos elementos decisivos para avaliar antecipadamente um hotel ou restaurante. Surge então o site internet cada vez mais rico de fotografias e sobretudo o peso crescente de opiniões de clientes, hoje em dia de tal modo importantes que corremos o risco de ver nascer um mercado incivil de compra e venda de opiniões positivas e negativas (para os concorrentes).

São aqui oportunas algumas considerações importantes para compreender a evolução do sistema económico e social. Antes de mais, nos bens de experiência resultam decisivos os elementos complementares. Posso ter o mais belo local arqueológico do mundo, mas se não existir um sistema territorial completo em funcionamento (transportes, hotel …), o valor daquele bem cai a pique, e com ele cai o valor de uma região inteira. Posso descobrir um local de turismo de habitação nas Marcas (região da Itália central, a sul da Toscânia) numa ótima ‘location’, mas se quando lá chego não encontro aquele estilo relacional fruto de séculos de cultura de acolhimento que se traduz em mil pormenores concretos, o valor daquelas férias desaparece ou redimensiona-se muito. Nestes bens colhe-se na sua pureza um dos traços mais complexos e misteriosos da sociedade de mercado. Quando um inglês vem passar férias à Toscânia ou à Andaluzia, procura também as dimensões intrínsecas das respetivas culturas que não são simples mercadorias. Sabe certamente que o resort e o restaurante típico são empresas comerciais e que por isso respondem à lógica do lucro, mas parte do bem-estar daquelas férias, por vezes a parte mais consistente, depende da presença de contextos culturais que embora entrando (e como!) no preço do alojamento ou da refeição, não são simples mercadorias ‘produzidas’ por aqueles empresários com mero objetivo de lucro. Tanto que o valor de assistir a uma verdadeira festa popular ou a uma autêntica reevocação histórica é imensamente maior que representações de folclore artificialmente incluídas no menú do restaurante. Por outras palavras: nos territórios que habitamos existem patrimónios culturais que são autênticos bens comuns (e não bens privados), acumulados ao longo de séculos, que se tornam também uma vantagem competitiva das empresas e que geram lucros. É necessário protegê-los, porque deles depende muita da nossa força económica e civil presente e, mais ainda, futura.

Um segundo âmbito é, depois, o designado consumo crítico e responsável. O que nos leva a entrar nas lojas civis e especiais do comércio justo é sobretudo o desejo de uma experiência. Para isso é essencial falar com quem lá trabalha, ouvir contar as muitas esplêndidas histórias dos bens, fazer ‘falar’ as pessoas que os produziram; entreter-se, porventura, a trocar umas palavras acerca do capitalismo que vivemos, ou saudar um outro cliente que ali foi para fazer a mesma experiência que nós. O valor deste consumo não está confinado apenas ao bem (e às relações de produção que ele incorpora); está também na experiência interpessoal que fazemos quando entramos numa loja, numa agência de banco, ou num mercado. A ética sem experiência é mera ideologia.

Por fim, precisamos de tomar consciência de que todos os bens de mercado estão a tornar-se bens de experiência. Trata-se de um paradoxo central na economia de mercado do nosso tempo. Por um lado, o mercado precisa de produzir um volume crescente de bens sem demasiadas variantes, já que as economias de escala e as exigências de custo apontam para consumos de massa de produtos semelhantes para que possam ser reproduzidos, com poucas variantes e a baixo custo, em todo o mundo. Assim se orientaram as empresas do séc. XX. Mas estas empresas encontram-se hoje, também, perante uma tendência oposta. A democracia e a liberdade geram milhões de pessoas com gostos e valores diversos; cada um sabe que é único e não redutível a uma classificação genérica. Então, as grandes empresas que tinham crescido com a mentalidade do consumo de massa, precisam de reformular-se profundamente. Por um lado, atrai-nos o termos também nós exatamente aquele tipo de computador ou telemóvel status simbol; ao mesmo tempo, porém, gostaríamos que o nosso PC tivesse alguma coisa de único, desenhado mesmo para mim; isto é, gostaria que a experiência que faço com aquele PC seja única e só minha, porque apenas eu sou eu. Eis então que se abrem perspetivas intrigantes para o próximo futuro industrial e económico. As empresas de sucesso, também à escala mundial, serão as capazes de combinar produtos que possam ser vendidos em mercados cada vez mais globais (e hoje a rede permite-o até a pequeníssimas empresas operando em Madras, Lanciano ou Lisboa), mas sobretudo capazes de envolver o ‘consumidor’ numa experiência na qual não se sente um anónimo e clone possuidor e utilizador entre muitos outros, mas uma peça única. Compreende-se então que nos espera um grande desenvolvimento de artigos ‘faça você mesmo’ mais sofisticados que os atuais, constituídos por uma combinação de bens normalizados, de assistência técnica e da nossa criatividade no personalizar habitações, jardins, sites da internet e, amanhã, inteiros bairros e cidades. Se soubermos olhar dentro do ambivalente mercado televisivo de última geração, por exemplo, podemos já lá encontrar qualquer coisa do género ou pelo menos tentativas mais ou menos felizes de ir nessa direção.

Quando saímos de casa para ir a feiras e mercados procuramos experiências maiores que as coisas que compramos. Frequentemente, porém, os bens não mantêm as suas promessas, porque as experiências que fazemos são demasiado pobres em comparação com a nossa sede de infinito. Então, desiludidos mas prontos a esquecer desilusões de ontem, recomeçamos todas as manhãs as nossas liturgias económicas, à procura de bens, de sonhos, de relacionamentos humanos, de vida.

Luigino Bruni, Avvenire, 17 de Novembro de 2013

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