A grande transição / 6 – O futuro humano é criatividade; não cínica homologação

By | May 15, 2015

O espírito da diferença

Não só no mundo dos negócios, mas também no das ideias, promove o nosso tempo ein wirklicher Ausverkauf [em alemão no original: «uma verdadeira liquidação»]. Tudo se adquire por um preço tão irrisório, que nos resta perguntar se haverá alguém que acabe por fazer uma oferta.” Søren Kierkegaard, Temor e tremor[1]

A beleza da vida social depende principalmente do jogo e do entrelaçar das diferenças. A beleza da terra não se deve apenas à grande variedade de borboletas e flores. É muita a beleza que vem das diferenças, modos e formas de fazer economia, empresa, banca. Maior ainda é a beleza que nasce das diferenças entre pessoas, do encontro de talentos diversos, do diálogo entre motivações.

Muitas “obras de arte” civis que continuam a embelezar a nossa terra comum nasceram de motivações mais fortes que os incentivos económicos, de “porquês” mais profundos que os monetários. Se os fundadores tivessem obedecido à lei férrea dos business plans, não teríamos hoje os tantos Cottolengo[2] que amaram os nossos filhos especiais, nem as milhares de cooperativas nascidas do desejo de vida e futuro dos nossos pais, mães e avós. Estas obras que brotaram de ideais maiores resistiram ao tempo e às ideologias, atravessaram séculos e continuam a atravessá-los. Nascidas de motivações grandes souberam gerar grandes coisas, duradoiras e fecundas. A vida económica e civil, que é vida humana, tem necessidade extrema de todos os recursos de humanidade, incluindo as suas motivações mais profundas. Uma economia reduzida a pura economia perde-se e deixa de ser capaz de gerar vida; não gera sequer boa economia.

Uma das tendências mais radicais do humanismo imunitário do capitalismo contemporâneo é a necessidade de controlar, limitar, normalizar as motivações mais profundas dos seres humanos, sobretudo as motivações intrínsecas de onde nascem gratuidade e liberdade. Na verdade, quando ativamos as paixões, os ideais, o espírito, sucede que o nosso comportamento foge ao controle das organizações. As nossas ações tornam-se imprevisíveis, porque livres; por isso põem em crise os protocolos e  job descriptions (normalização dos procedimentos de trabalho). E principalmente põem em crise a gestão, cuja função e natureza é tornar controláveis e previsíveis os comportamentos na organização. Para poder gerir muitas pessoas diversas e orientá-las todas para os objetivos simples da empresa é preciso proceder a uma forte homologação e normalização dos comportamentos que assim ficam incapazes de criatividade (que todos, nas palavras, afirmam desejar). As motivações intrínsecas são as mais poderosas e por isso as mais desestabilizadoras. Libertam-nos do cálculo de custo-benefício, o que nos dá capacidade de fazer coisas apenas pela felicidade intrínseca da ação. Sem motivações intrínsecas não teríamos investigação científica, poesia, grande parte das expressões artísticas, espiritualidade verdadeira; como não teríamos muitas empresas, comunidades e organizações que nascem das paixões e dos ideais dos fundadores e se mantêm vivas porque e enquanto houver alguém que continue a trabalhar não apenas por dinheiro. Em toda a verdadeira criatividade são essenciais as motivações intrínsecas. Como tragicamente todos os dias podemos constatar, porém, as motivações intrínsecas estão também na raiz dos piores comportamentos dos seres humanos. Por isso, o espírito moderno – o económico, de modo especial – receando os efeitos potencialmente desestabilizadores das grandes motivações humanas, optou por limitar-se às motivações instrumentais ou extrínsecas. A gestão do jogo público de diferenças e identidades foi deixada à democracia e expulsa das empresas. Deste modo, a cultura das organizações procura transformar em incentivos todas as várias motivações humanas, reduzir os muitos “porquês” a um único, simplicíssimo, “porquê”. Assim se reduziram as feridas (a vulnerabilidade) dentro das empresas; mas reduziram-se também as bênçãos (o bem-estar).

O incentivo tornou-se o grande instrumento para controlar e gerir pessoas “reduzidas” e despotencializadas nas suas múltiplas motivações, para assim ficarem alinhadas com os objetivos das organizações (o incentivus era o instrumento de sopro que servia para afinar os instrumentos da orquestra, a trompa que incitava a tropa para a batalha, a flauta do encantador de serpentes). A economia e as ciências de gestão acabaram por contentar-se com as motivações menos poderosas dos seres humanos – mesmo quando procuram instrumentalizá-las, prometendo aos recém-admitidos um paraíso que não podem nem querem dar. Também isto está no preço da modernidade.

A operação de nivelamento motivacional é sempre perigosa, porque “o homem a uma só dimensão” não funciona bem em lado nenhum; sobretudo não é feliz. Onde, porém, a expulsão de motivações mais profundas, criativas e livres é fatal, é nas organizações nascidas e alimentadas por ideais, carismas ou paixões – designadas OMI (Organizações de motivação ideal). São organizações “diferentes” que têm necessidade fundamental de uma parcela, ainda que pequena, de trabalhadores, dirigentes, fundadores com motivações intrínsecas, isto é, dotados de um “código genético” diferente do que foi concebido e implementado pela teoria de gestão dominante. Essas pessoas operam nas empresas sociais e civis, nas comunidades religiosas, em muitas Ong, em movimentos espirituais e culturais, nos mundos do ambientalismo, do consumo crítico, dos direitos humanos; mas também acontece, e com bastante frequência, encontrá-las fundando empresas familiares e em muita da economia “normal” realizada por artesãos, pequenos empresários, cooperativas, finança ética e territorial.

Essas organizações e comunidades não existiriam sem a presença de tais pessoas “fermento”, criativas, geradoras e muitas vezes desestabilizadoras da ordem constituída; são “movidas por dentro”, têm em si um “carisma” que as impele a agir obedecendo ao seu daimon. Estes trabalhadores com motivações intrínsecas apresentam duas notas motivacionais dominantes. Por um lado são pouco motivados pelos incentivos económicos da teoria de gestão, respondem pouco ou nada ao som exterior da flauta encantatória; do que gostam mesmo é de ouvir outras melodias internas. Paralelamente, são muitíssimo sensíveis às dimensões ideais da organização que fundaram ou em que trabalham por motivos não apenas económicos: motivos ideais com os quais se identificam, ou para os quais se sentem vocacionados.

A gestão de pessoas com motivações intrínsecas é crucial quando estas organizações atravessam momentos de crise e conflito que podem surgir, por exemplo, quando há uma nova geração ou liderança, por morte e sucessão do fundador. Esses momentos – que em todas as organizações são delicados – são decisivos para as OMI; o erro mais típico e muito frequente é não se entender as instâncias e protestos provenientes precisamente dos membros mais motivados. Se quem gere ou, como consultor, acompanha essas OMI não reconhecer o valor das motivações mais profundas – e não se trata de incentivos – não só não alcança o objetivo esperado, mas ainda agrava mais a crise destas pessoas e da organização.

Durante as crises de qualidade ideal, os primeiros a protestar são os mais interessados na qualidade que se está a perder. Mas se dirigentes e responsáveis interpretam esse tipo de protesto simplesmente como um custo e o rejeitam, os primeiros a sair são precisamente os melhores (como tentei mostrar em alguns estudos realizados juntamente com Alessandra Smerilli). Sendo estas pessoas pouco sensíveis a incentivos e muitíssimo sensíveis às dimensões ideais e de valor, estão dispostas a dar tudo, muito para além do contrato, enquanto “valer a pena”, enquanto são vivos e reconhecidos os valores em que investiram muito. Mesmo nas empresas, há pessoas que atribuem um valor tão alto aos valores simbólicos e éticos inspiradores do seu trabalho, que por eles estão dispostas a fazer (quase) tudo. Mas logo que se dão conta de que a organização se está a tornar (ou se tornou) outra coisa, toda a recompensa intrínseca que extraíam do seu trabalho ou atividade reduz-se drasticamente; a ponto de, em certos casos, se anular (ou mesmo passar a ser negativa). Também isto exprime a antiga intuição (que remonta a pelo menos S. Francisco) segundo a qual a verdadeira gratuidade não tem preço zero (não é gratuita); tem um preço infinito.

A gestão de crises nas OMI é uma verdadeira arte; requer sobretudo nos responsáveis a capacidade de distinguir os tipos de mal-estar e de protesto, o saber identificar e valorizar o protesto que provém daqueles que protegem e são portadores dos valores ideais da organização. A nova ideologia de gestão, pelo contrário, cada vez mais aplanada num único registo motivacional, não possui categorias para compreender os diversos tipos de protesto; por isso não consegue reconhecer, por detrás de uma ameaça de abandono, um possível grito de amor.

As pessoas com motivações intrínsecas possuem também, de modo geral, uma grande resiliência, uma grande fortaleza nas adversidades. Conseguem aguentar longo tempo numa condição de protesto, preferindo ficar, embora protestando (Albert Hirschman define como leal quem protesta e não sai). A pessoa com forte motivação intrínseca sai e abandona apenas quando perde a esperança de que a organização poderá recuperar os ideais perdidos; por vezes a própria saída é a última mensagem, extrema, para suscitar uma mudança de rumo nos dirigentes. Compreende-se, portanto, que uma OMI é sábia quando consegue manter as pessoas leais, dando direitos de cidadania ao seu protesto, valorizando-o e não o considerando um custo ou empecilho.

A biodiversidade dentro das organizações está a diminuir drasticamente; o nivelamento motivacional produz desconforto e mal-estar crescente, mesmo no coração do capitalismo. Mas quem ama e vive em comunidades e organizações com motivação ideal precisa de defender e salvaguardar as motivações intrínsecas, hoje ameaçadas de extinção. Talvez seja possível resistir anos e anos dentro de uma multinacional sem dar espaço a motivações ideais; mas as OMI depressa morrem se reduzirmos todas as paixões ao triste incentivo.

Nas pessoas, em todas as pessoas, as motivações são muitas, ambivalentes e entrelaçadas umas nas outras. A cultura e os instrumentos da gestão podem favorecer o seu aparecimento e a sustentabilidade das motivações mais profundas e ideais; podem também aumentar o cinismo da organização, na qual cada um se contenta com os incentivos e deixa de pretender demasiado da organização. E assim cedo acaba por nada esperar dela.

Seremos melhores, passada esta grande transição, se criarmos organizações mais bio-diversificadas, menos niveladas nas motivações e onde haja espaço para a pessoa inteira; organizações habitadas por trabalhadores um pouco mais difíceis de controlar e de gerir, mas mais criativos, mais felizes, mais humanos.

Luigino Bruni, Avvenire, 8 de Fevereiro de 2015

http://edc-online.org/it/pubblicazioni/articoli-di/luigino-bruni/editoriali-avvenire/10108-lo-spirito-delle-differenze.html

[1] (NT) – Tradução, Introdução e Notas de Elisabete M. de Sousa; revisão do texto de Anabela Prates Carvalho. Edição Relógio d’Água, Coleção Filosofia, p. 49.

[2] (NT) – Giuseppe Benedetto Cottolengo (*Bra, Cuneo, 3 de Maio de 1786; †Chieri, 30 de Abril de 1842; canonizado por Pio XI em 19 de Março de 1934) fundou obras de assistência para pobres e deficientes profundos,  bem como diversas famílias religiosas dedicadas às mesmas [ver, por exemplo, http://www.treccani.it/enciclopedia/giuseppe-benedetto-cottolengo-santo_(Dizionario-Biografico)/].